quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Portugal, gostei de te beijar muito apaixonadamente na boca


Assisti pela internet a partes do funeral de Mário Soares. Senti-me comovida, e muito orgulhosa do meu país. O equilíbrio entre a homenagem da nação e a homenagem dos filhos João e Isabel, o claustro dos Jerónimos (curiosamente, quando o vi ontem pela primeira vez pensei que estariam a repetir imagens da cerimónia da adesão de Portugal à CEE), o maravilhoso registo da voz de Maria Barroso a declamar poemas, a voz de Mário Soares a dizer História, a dignidade das palmas populares ao passar do cortejo, a emoção das pessoas, tudo isso, e mais ainda: um Presidente da República culto e que sabe estar.

(Quase me senti tentada a agradecer a Cavaco parte da longevidade de Mário Soares: este não nos podia fazer a desfeita de morrer enquanto aquele fosse presidente, porque o país não aguentaria as vergonhas no funeral...)

Pelo meio, invoquei Eça e o seu olhar clínico sobre a nossa sociedade - os sinais de indigência humana e intelectual no que se tem lido por aí nos jornais e nas redes sociais, a par da falta de oportunidade dos repórteres que acompanharam as cerimónias fúnebres em directo (tipo: "porque é que está a chorar?", "vejo que não consegue falar, mas quer-nos dizer porque está tão emocionado?", "este é um momento de silêncio solene, ninguém fala. Ninguém? Não! Eu continuo aqui, firme e de pé, a cumprir a minha missão de matraquear os ouvidos dos telespectadores!"). Material que daria a Eça um magnífico romance de mil páginas. 

Voltando ao que foi realmente bom, sublinho dois momentos que me tocaram em especial:

A voz de Maria Barroso:




O final do poema de Baudelaire lido por Isabel Soares:


Ô Mort, vieux capitaine, il est temps ! levons l'ancre !
Ce pays nous ennuie, ô Mort ! Appareillons !
Si le ciel et la mer sont noirs comme de l'encre,
Nos coeurs que tu connais sont remplis de rayons !


Verse-nous ton poison pour qu'il nous réconforte !
Nous voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau,
Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu'importe ?
Au fond de l'Inconnu pour trouver du nouveau !



Antes de partir para o fundo do desconhecido em busca de algo novo, imagino Soares a olhar para a sua vida, e a concluir (pedindo emprestada a imagem de Jorge Sousa Braga):

Portugal, gostei de te beijar muito apaixonadamente na boca. 



3 comentários:

  1. Obrigado, Helena, pelo seu texto. Estava a pensar se a Destreza deixaria passar em claro a morte de Mário Soares, e estava a adiar publicar um post sobre o tema. Soares é uma das personalidades nacionais que se libertará da lei da morte.

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    1. Eu quase escrevi, mas não me senti muito capaz de prestar uma homenagem justa. Votei em Mário Soares para Presidente em 1991 e achei que fiz uma boa escolha. :-)

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  2. Helena:
    É bom verificar que, por vezes, quem está longe pode ver melhor do que quem está perto.
    Que bonita homenagem da sua parte a M. Soares.
    ----------------------
    P. S. Há uma figura que ocupa desde há já alguns anos uma coluna semanal no jornal Expresso a dizer parvoíces.
    Pior, nem tem a noção do ridículo.
    Mas às vezes até os piores acertam, foi o caso desta crónica, que responde muito bem ao que a Helena fala sobre as redes sociais.
    Henrique Raposo, «Obama-Soares e a intolerância das redes sociais», in Expresso-Diário:
    http://leitor.expresso.pt/#library/expressodiario/11-01-2017/caderno-1/opiniao/obama-soares-e-a-intolerancia-das-redes-sociais

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