quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Portugal, a eterna metrópole

Na sequência da recente viagem de António Costa à Índia pude mais uma vez constatar a singularidade do complexo colonial português. A maioria dos países ex-colonizadores sente uma culpa característica ou, no máximo, uma indiferença relativamente às nações que no passado colonizou. Portugal, pelo contrário, sente ainda hoje um estranho orgulho no seu império passado. O mito criado por Salazar permanece vivo, de uma forma que ultrapassa a mudança de regimes ou ideologias políticas.

O dito mito assentava em dois ou três pressupostos básicos. A suposta capacidade inata e única dos Portugueses para colonizar. A ausência de racismo no processo de colonização. A invenção do “mulato”.  Salazar fez realmente muito bem o seu trabalho de construção da identidade nacional. Apesar da existência de alguns laços, especialmente económicos, com as colónias anteriores à instauração do Estado Novo, o Império enquanto símbolo da soberania, da razão de ser do regime político vigente, e da mitologia nacional aparece em toda a força com a edificação do Estado Novo.

Olhemos para alguns números. Num ensaio sobre o 25 de Abril, onde aborda a questão da descolonização, Vasco Pulido Valente cita números que apontam para um total de 15.000 (quinze mil) habitantes de Angola e Moçambique com origem na metrópole em 1910. No final da II Guerra Mundial, os números ascenderiam, então, a 70.000 habitantes brancos com origem na metrópole. De acordo com o autor, apenas com o início da guerra colonial houve, de facto, um aumento substancial do número de brancos de origem Portuguesa nas colónias. Os motivos para a ausência de um número alargado de colonos são, para o autor, bastante prosaicos. Os Portugueses não pretendiam emigrar para a África Portuguesa (o que correspondia a um degredo económico à época). Pretendiam, isso sim, emigrar para países ricos, onde pudessem, naturalmente, alcançar os seus sonhos materiais, e ver-se livres da pobreza abjeta que grassava em Portugal. Países como o Brasil, primeiro, e, mais tarde, França ou Alemanha. E, recentemente, o historiador económico Nuno Palma tem desenvolvido excelente trabalho económico, referente sobretudo aos séculos anteriores, que corrobora no essencial esta visão.  O “império colonial português” durou na verdade 20 anos (dos anos 50 aos anos 70), sendo que metade deste tempo foi em guerra para não se desintegrar. Por outras palavras, nós nem quando éramos metrópole éramos metrópole!

É, pois, frequente (e interessante) vermos peças jornalísticas – como as que se repetiram durante a última viagem do primeiro-ministro – a aludirem à forma como ainda hoje se sente de forma fortíssima (!) a presença portuguesa em Goa, Macau, África e no Brasil.

As peças jornalísticas da semana passada foram especialmente ridículas. Uma peça de uma estação de televisão aludia à emoção de se sentir Portugal do outro lado do mundo, nas ruas de Goa. Logo de seguida, entrevistada uma prima de António Costa, esta teve de falar em inglês, uma vez que não sabia português. O semanário Expresso apresentou uma entrevista ao Ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral, onde este referia o habitual estribilho que Portugal deveria aproveitar estes fortíssimos laços culturais passados para se estabelecer como porta de entrada do investimento indiano na Europa. Esta expressão não será estranha para ninguém. Já todos ouvimos – inúmeras vezes – que Portugal deve aproveitar estes “laços” coloniais passados para se posicionar como porta de entrada na Europa para investidores Brasileiros, Angolanos, Indianos ou Chineses. Eu própria cheguei a aprender na escola e a debitar em testes – em pleno século XXI – que Portugal deveria aproveitar a sua posição atlântica e ser uma plataforma giratória entre a CPLP e a UE. Este é, pois, o grande desígnio geopolítico de Portugal!

No fundo, a expressão “porta de entrada” revela simplesmente que esta gente acha que Portugal deve continuar a ter um papel de metrópole a cumprir, onde os laços comerciais são exclusivos com Lisboa, que, depois, tirará benefícios de revenda os produtos e serviços das colónias. Manuel Caldeira Cabral, entre muitos outros, acha mesmo que um investidor milionário indiano – que não sabe português (nem a prima do Costa sabe!) – quando quer investir na Europa (por exemplo, na Polónia) deve primeiro fazer escala em Lisboa, em vez de ir directamente onde quer. Dizem-me, “sim, mas no caso dos investidores brasileiros ou angolanos, a língua é um facilitador importantíssimo”. Bem, eu lamento desiludir os meus leitores, mas creio que isso é igualmente uma fantasia.

Olhemos para o caso do Brasil. De facto, é o país onde mais se fala português. Mas, dada a sua independência tão mais anterior, percorreu uma história independente de Portugal que os Portugueses parecem esquecer. Foi, por exemplo, um fortíssimo destino de emigração de italianos, alemães, holandeses e japoneses, os quais contribuíram para o enriquecimento cultural, económico e social do país. Nas zonas mais ricas do país (nomeadamente nos estados do Sul), existem comunidades completamente bilingues, que mantêm laços culturais e económicos com os seus respectivos países de origem. Para além disso, qualquer pessoa com experiência em grandes universidades Americanas, testemunhará o enormíssimo número de Brasileiros que lá estudam e se preparam para tomar as posições de destaque no seu país de origem.

Por tudo isto, a ideia de que um investidor da elite Brasileira virá a Lisboa “picar o ponto”, e pedir a autorização à metrópole, para entrar no mercado Europeu, é simplesmente risível. Digamos que um país com uma Justiça em frangalhos, um código fiscal sem qualquer previsibilidade, impostos altos, e uma população pouco educada é de qualquer utilidade apenas porque fala a mesma língua parece-me no mínimo duvidoso.


Será isto culpa de uma propensão portuguesa para mitos, um trabalho de propaganda do Estado Novo muito bem feito, uma ausência de “julgamento” histórico e público do real papel das figuras e elites do Estado Novo (Adriano Moreira passa hoje no espaço público Português por um  “grande humanista”)? Falta ainda uma reflexão nacional sobre a extensão real do racismo nas colónias (recomendo, a este propósito, o magnífico livro de Isabela Figueiredo “Caderno de Memórias Coloniais”). Não sei.

3 comentários:

  1. Tive colegas brasileiros que estavam a tirar o doutoramento, quando eu comecei o mestrado nos EUA, e trabalhavam para a Embrapa.

    Acho que poderíamos ser melhores; por exemplo, o Reino Unido, mais propriamente Londres, age como um facilitador do sistema financeiro entre o Resto do Mundo e a Europa; a Irlanda também seguiu uma estratégia desse tipo para se desenvolver depois de entrar na CEE.

    Em Portugal as coisas são mais nubladas: os partidos fazem campanha usando argumentos desse tipo, mas a estratégia seguida quando chegam ao poder não é uma de gerir o país de forma a ser um facilitador de negócios; gerem o país de forma a manter os interesses instalados. Ou seja, há uma dualidade entre o que se diz e o que se faz. Sem dúvida que a comunicação social é cúmplice, usando argumentos propagandistas e fazendo muito pouco jornalismo de investigação. O mau funcionamento da Justiça, um enquadramento legal complicado e incompleto, a burocracia arcaica servem dois propósitos: dão a impressão de que se faz qualquer coisa, quando na realidade têm o papel de ser grãos de areia na engrenagem.

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  2. Este post tem muito do que os brasileiros chamam complexo de vira-lata. A Irlanda e o Reino Unido acolhem as sedes fiscais das multinacionais americanas, sul-africanas ou australianas na Europa, as multinacionais espanholas ganharam dimensão global a partir da América Latina, a indústria alimentar italiana cresceu a partir das suas comunidades de imigrantes nos EUA e no Brasil, França, Holanda e Inglaterra mantêm as suas colónias nas Caraíbas e no Índico e a Portugal só resta sentir vergonha do seu passado, julgar alguns factos ocorridos há dezenas ou centenas de anos à luz dos critérios morais de hoje e não aproveitar as ligações culturais, afectivas, históricas, familiares e empresarias que tem com lugares o por donde passou. No Ultramar viveram os portugueses mais ousados. Por isso, muita da administração, do empresariado, da academia e até da política nacionais têm sido ocupadas por retornados, desde o 25 de Abril. Acho que a atitude, de complexo de inferioridade, representada neste post tem muita culpa no facto de Portugal se ter transfomado numa vulgar colónia do Partido Comunista Chinês e de mais meia dúzia de especuladores de ocasião.

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  3. Eu não tenho dados objetivos mas penso que a qualidade de vida nas ex-colónias é muito pior do que quando eram colónias. A guiné-bisnau é um estado falhado governado por narcotraficantes, Angola uma quasi-ditadura que passou por uma guerra civil de quase 2 décadas com a maioria da população deslocada em Luanda e numa pobreza abjeta apesar de ser um país muito rico, Moçambique penso que também não estará muito melhor. Eventualmente poderão estar em melhor situação do que antes da descolonização Cabo Verde e São tomé e Príncipe. Mas mesmo assim se compararmos com os outros arquipélagos que continuaram sob administração Portuguesa (Madeira e Açores) penso que a qualidade de vida é muito superior pelo que não sei se não teriam beneficiado em ficar sob administração portuguesa. Tendo em conta isto será que esse império colonial português com o "mito" do mulato era assim tão mau? Será que as colónias realmente beneficiaram em livrar-se dele? Ou será que o principal benefício até acabou por ser da metrópole?

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