quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Limites de um mercado competitivo

A respeito do Obamacare, é comum ouvir-se que, se houver competição, os preços serão mais baixos e o que falta ao mercado de saúde do Affordable Care Act, vulgo Obamacare, é que, em vez de haver mais competição, ela está a diminuir. Quem diz estas coisas confunde causa com consequência. Se o mercado tiver muitos participantes inicialmente, pode ser uma consequência da competição no mercado que eventualmente haja menos competição. Basta que as seguintes condições se verifiquem, por exemplo:
  • à diferenciação de preço não corresponde uma diferenciação de qualidade;
  • a diferenciação de qualidade, se existe, não é desejada pelos consumidores aos preços praticados; e
  • o mercado inclui participantes do lado da oferta que não têm como objectivo o lucro, o que lhes dá uma vantagem sobre quem tem de obter lucro.

Se uma destas condições, ou uma combinação delas, se encontrar no mercado, então é natural que o número de participantes diminua com o tempo e apenas os provedores de seguros de saúde com preços mais baixos sobrevivam no mercado, o que diminui a competição. Mas há ainda outra coisa a ter em conta: as companhias que participam no mercado do Obamacare não tinham grande informação acerca do perfil de risco de quem compraria seguro nesse mercado, pois muitas dessas pessoas decidiam não comprar seguro de saúde por um ou vários motivos: estavam bloqueadas do mercado porque tinham uma condição pré-existente (o LA-C explica isso na sua peça de opinião desta semana no Observador) e não trabalhavam para um empregador que lhes fornecesse seguro de saúde (as pré-condições não podem ser motivo de exclusão nos seguros fornecidos através de empregadores, mas note-se que os muito doentes podem sempre ficar desempregados o que os exclui eventualmente desse mercado); não tinham rendimento suficiente para comprar seguro de saúde; eram preguiçosas e escolhiam não se chatear a comprar um seguro; achavam que não precisavam de um seguro, pois eram saudáveis, etc.

A questão da condição pré-existente é importante, pois se a condição for tal que impeça a pessoa de ter um emprego e se houver um número suficiente de pessoas assim, o nível de risco da população que não tem seguro pode ser muito superior à população que tem seguro através de emprego. Não sabendo as características desta parte da população, é natural que os preços praticados inicialmente sejam preços de desequilíbrio, ou seja, preços demasiado altos ou baixos:

  • os preços podem ser demasiado altos, pois as companhias percepcionam um risco maior na população do que o verdadeiro, o que leva a que haja poucos participantes que escolhem o seguro, logo estas companhias têm menos consumidores por quem dividir o custo fixo de estar nesse mercado, havendo um incentivo para saírem, em vez de reduzirem o preço, ou pedirem subsídios maiores como condição de ficarem.
  • os preços podem ser demasiado baixos, se a companhia estima que o nível de risco é inferior ao verdadeiro e, havendo muitas pessoas a comprar esses seguros, acabam por se concentrar as perdas nas companhias cujo preço é mais baixo. Estas têm de sair ou aumentar os preços a um nível acima do aumento de risco causado pelo envelhecimento da pessoa segurada em anos subsequentes.

Dado que o que caracteriza o mercado de seguros de saúde do Obamacare é a facilidade com que se tem acesso à informação de mercado (qualidade e preço) quando se compra o seguro, o lado da procura tem uma vantagem de informação maior do que o lado da oferta, pois quando as companhias decidem que preços praticar, não sabem o preço dos concorrentes, nem sabem a disponibilidade para pagar dos consumidores, nem o risco dos mesmos, como discuti acima. Agora que o Obamacare já está estabelecido, as seguradoras já têm mais informação acerca deste nicho do mercado.

Nas seguradoras em que há o motivo lucro, há ainda outra barreira: essas companhias têm informação sobre a rentabilidade do mercado de seguro fornecido através de empregadores e, nesse mercado, o poder de mercado está inclinado para o lado das seguradoras: apesar de os salários reais nos EUA terem estagnado nos últimos 30 anos, sensivelmente, os custos dos seguros de saúde aumentaram acima do nível da inflação, ou seja, os empregadores têm pouco poder de negociação com as seguradoras e escolhem absorver os custos crescentes do seguro de saúde à custa de manter os salários reais estagnados. Sendo assim, participar no Obamacare, onde as seguradoras não têm poder de mercado, dilui o lucro das seguradoras, que têm de prestar contas aos seus accionistas. Note-se que muitas seguradoras tentaram exercer poder de mercado ao ameaçar sair do mercado Obamacare, pois não oferecia as condições de rentabilidade a que estavam habituadas, como que a dizer que precisavam de subsídios mais generosos para ficarem.

A retórica de Donald Trump será testada no mercado: diz ele que irá arranjar um sistema para substituir o Obamacare em que a competição irá garantir preços baixos. Só que não há nada que impeça actualmente as seguradoras, que até já têm informação sobre o mercado, de participarem livremente no mercado e competirem pelo negócio das pessoas que estão no Obamacare, ou seja, será difícil que um mercado sem intervenção do estado alicie as seguradoras a participar ao mesmo tempo que garanta preços de mercado baixos.

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