segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Frases famosas 83


Sempre que desço a avenida até ao mar, vejo o mesmo cão.
Aõ aõ, diz-me ele, o que deve ser qualquer coisa como bom dia. Quero eu acreditar, que tenho coração doce, e há quem diga mole. Já me fizeram notar que o cão, estando como está atrás de um muro e à frente da casa que o muro circunda, deve antes estar a dizer põe-te a milhas. Desanda, põe-te a andar, não te atrevas, dá de frosques, não estou a par de outras expressões coloridas usadas em casos destes. Talvez eu saiba que é isto que o cão diz sem que mo façam notar, porque nunca me aproximei do cão, nem tentei fazer-lhe uma festa através das grades do portão e a um cão que diz bom dia seria natural coçar debaixo do queixo e por cima do focinho. Mas nunca fiz isto, é a verdade, e nunca tentei fazer. Nem sequer atravesso o passeio, apesar de ver gente a atravessá-lo e a trocar umas palavras com o cão. Toma lá, dizem uns atirando pauzinhos e ramagens, e o cão responde ão ão e corre atrás do que lhe atiraram. Nestas alturas imagino que o cão estará a dizer obrigado, ena ena, que bom, mas mais uma vez os cínicos, que sempre souberam falar com cães, observam que é mais provável que quem atira os paus ao cão esteja a meter-se com ele, a aproveitar-se do zelo da criatura, a enganá-la, e é mais provável que o cão diga seus meliantes o meu quintal não hão-de vocês sujar com essas porcarias. Não sei. Mais uma vez, a verdade é que nunca atirei nada ao cão, por isso talvez seja isto mesmo que eu penso também. Quando ao fim da tarde subo a avenida voltando da praia lá está o cão e mais uma vez ladra e mais uma vez eu penso que me diz boa tarde. Que me pergunta até que tal estava a água, porque vê que tenho o cabelo molhado e a toalha húmida. Mas por esta altura já nem preciso que me contrariem com traduções mais antipáticas do que estará a dizer o bicho. Sou mesmo eu a fornecê-las, e ao fazer isso percebo a coisa terrível que está a acontecer-me, que ao sequer pensar que o cão pode ser antipático estou a duvidar de mim e do cão, e a duvidar daquilo que me é mais caro, a duvidar da minha bondade, a duvidar se serei afinal tão dúplice a ponto de pensar a meu próprio respeito que sou melhor do que sou, que o meu coração é doce porque imagino que o cão me diz bom dia quando me diz ão ão por trás do muro, mas é afinal amargo porque imagino também que não é isso que o cão diz. Um coração amargo que pensa de si mesmo que é doce, que cúmulo de sentimentalidade. Mais valia ser só amargo, ou só doce, que descanso. Tenho mesmo que arranjar uns headphones para ir à praia.

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