domingo, 31 de julho de 2016

História gótica


100. Os guinchos estrídulos das criaturas desfazendo-se contra as paredes da cripta
para onde as atiravam ondas de sangue que em golfadas como torrentes ou vagas que arrastam navios deixando-se quebrar porque são cascas de noz essas ondas de sangue acumuladas ao longo dos milénios sugadas de gerações de mulheres e homens e que agora saltavam os limites do caixão como os rios saltam as margens inundando tudo porque as margens só são capazes de conter cursos de água serenos e nada podem contra a fúria da enxurrada os guinchos eram sons terríveis multiplicados pelas formas côncavas do mausoléu de pedras destruídas pelo sangue implacável arrasando à sua passagem campas e portões e destruindo os fragmentos de fotografias e cartas que atraíam os desesperados em busca de outros fragmentos de fotografias e cartas onde poderiam ler e ver quem lhes desaparecera sem outro rastro afogando os desesperados que afinal se agarravam a essa esperança última como se agarram os marinheiros às bóias ou às cordas os que se despenham sobre abismos porque era um mar a avalanche do sangue devastando tudo e um abismo o extermínio que trazia nada e ninguém sobrando nem animais nem plantas nem os instrumentos que se enterravam nas carnes torturando-as e por isso nem a dor da vítima nem o prazer do algoz a vítima grata ao sangue que aniquila e o algoz penando porque prazer e dor se trocaram convertendo-se um no outro mas durando um segundo apenas esta mudança e esta gratidão e esta pena porque vítimas e algozes não resistiram também ao dilúvio sem arca onde não puderam abrigar-se e que se existisse não resistiria ao cataclismo protegendo os que nela procuraram salvação que não existe porque o sangue ocupa todo o espaço e o tempo anula porque é uma dimensão daquele e nada respira e nada sobrevive à voragem do precipício que o sangue escava sem que encontre um fundo pois este seria algo que o deteria anulando o seu movimento como uma mão por vezes trava um insulto ou impõe silêncio este impondo-se aos guinchos atrozes à medida que o sangue enchia bocas e gargantas e esófagos e estômagos rebentando-os e explodindo as veias cujo sangue engrossava o sangue transformando em uma coisa só o que fora coisas diferentes como o castelo negro desmoronando-se em sangue vermelho. O Confessor cravara no peito do mal puro ocupando o esquife o crucifixo e com o punhal lhe vazara os olhos.

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