quinta-feira, 9 de junho de 2016

História gótica



79. Os errantes não tinham ainda partido e isto trazia inquietos os habitantes de Zselyk.
As panelas que havia para consertar já tinham sido consertadas. Não havia mais batatas nos campos para apanhar, ou medas de feno que fosse preciso levar para os estábulos. Os cavalos estavam ferrados e as gaiolas estavam cheias de pássaros. Ninguém ficara sem saber o que lhe reservavam os fados, os casamentos e filhos e viagens e doenças e ganhos haviam sido anunciados a todos os que tinham uma palma de mão para submeter aos olhos que viam tempos distantes. Muitas moedas se perderam em jogos de dados e apostas. As lutas de galos tinham deixado depenados os bichos e os que a elas assistiam. Os vizinhos a quem era preciso lançar maus-olhados estavam devidamente embruxados, partiam-se-lhes as loiças e murchavam-se-lhes as flores nos vasos, os fundilhos das calças rompiam-se e rompia-se com eles a compostura, relógios paravam e carrinhos de mão perdiam as rodas. As quezílias de Zselyk eram brandas e ninguém desejava aos conterrâneos mais do que um nariz entupido ou uma diarreia teimosa. Os animais não ficavam doentes, nem as culturas apodreciam. Ninguém perdia todos os seus haveres num incêndio e as crianças não suavam com febres. Ninguém desaparecia, ninguém era transformado num réptil ou num rato, ninguém era mudado em estátua de pedra ou de sal, ninguém acordava sem um membro, ninguém olhava num espelho e encontrava uma cara nova ou uma orelha fora do sítio. As jovens belas não ficavam feias nem as feias ficavam belas. Não apareciam homens estropiados ou mulheres capazes de atravessar portas fechadas. Não se abriam buracos diante dos pés de quem atravessava a praça, os edifícios não ruíam, as janelas não ganhavam vida própria. Não havia correntes de ar frio ou aparições. Nem os parentes mortos vinham visitar os parentes vivos respondendo a invocações. Ninguém ficara mudo. Ninguém passara a falar em línguas estranhas. Ninguém zurrava como um burro ou mugia como uma vaca. Ainda assim, a inquietação dos aldeões crescia à medida que dias passavam e não partia a caravana colorida dos zíngaros. É verdade que em Zselyk era costumeira a sensação de calamidade iminente, mas por ser costumeira os aldeões tinham-na acomodado juntamente com as outras sensações da vida comum. Ainda que fosse um paradoxo viver inquieto e viver uma vida comum. Mas esta inquietação era nova. Associava-se à outra de tal modo que esta regressava ao primeiro plano e alimentava de pavores a imaginação dos sedentários. A inquietação costumeira, a inquietação que pairava sobre a aldeia tal como sobre ela se inclinava o castelo, ameaçava-a com a descida dos monstros que nunca tinham sido vistos mas que todos adivinhavam porque todos tinham já acordado aterrados de pesadelos. E a inquietação nova ameaçava-os com o malogro da fuga. Os nómadas podiam associar-se aos monstros. Podiam surgir de todos os lados lâminas refulgentes e chicotes. Às orações podiam responder gargalhadas ímpias. Tudo era possível em Zselyk. Sobre ela podiam abater-se todas as abominações. E desta vez tinham razão os aldeões em temer o pior.

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