domingo, 12 de junho de 2016

História gótica


81. "Estes livres-pensadores. Chega a hora e chamam todos pelo Altíssimo.
E quem se incomoda sou eu!" Quem assim falava era o padre, desconfortável e enfadado na carruagem que o levava a Zselyk. Desta vez viajava sozinho. Não havia meninas de quem adivinhar a figura sob os vestidos e casacos, nem cavalheiros com quem trocar umas opiniões. Na verdade, o padre não era o único ocupante da carruagem, mas os outros viajantes tinham um ar tão sujo e grosseiro, e umas caras tão zangadas, que nem ocorrera ao padre iniciar uma conversa ou sequer cumprimentá-los. Para todos os efeitos, viajava sozinho. Os outros eram um homem e uma mulher, de idade indefinida e vestidos com camadas e camadas de roupas de cores escuras. Esta acumulação de casacos e capas tornava impossível saber se eram gordos ou magros. Era até mesmo difícil saber se eram altos ou baixos. Apesar de terem as cabeças embrulhadas em lenços, toucas e chapéus, as caras tinham um tamanho a que podemos chamar médio. Seria de supor que o tamanho do restante corpo fosse médio também, mas os pés, igualmente calçados com uma sucessão de chinelos, sapatos, botas e galochas, não chegavam ao chão da carruagem, e as quatro pernas do casal lá iam oscilando com as covas e pedras da estrada. Se o padre tivesse uma mente curiosa, e curiosa especialmente por criaturas estranhas, teria ali muito que observar e muito que especular. Poderia entreter-se por toda a viagem, até mesmo por uma viagem com o dobro da duração. Porque, sentados um em frente ao outro, o homem e a mulher iam trocando olhares e pequenos estalidos que davam com a língua e tudo isto tornava-os ainda mais estranhos. Comunicavam como se fossem animais de outra espécie. Ou visitantes do submundo, que todos sabemos ser um lugar muito quente, o que explicaria as roupas que traziam. E seria de esperar de um padre que fosse sensível aos sinais dos que habitam as entranhas da terra e do anjo caído que é Senhor de todos eles. Mas não. Não é raro este fenómeno de um padre descrente, ou que acredita apenas em hierarquias terrenas. Que é um funcionário, pois. E também nesta ocasião, como naquelas em que lhe incomodavam as rotinas com cerimónias em lugares mais distantes que tinha a obrigação de oficiar, ou naquelas em que tinha que aturar os medos das velhas supersticiosas, não lhe ocorreu olhar para o casal como um sinal de deus ou do seu rival Lúcifer. O livre-pensador que o fazia deslocar-se desta vez era um agricultor forte e alto que sempre o olhara com desconfiança. Via-se que achava serem desperdiçados no padre os pães e vinhos feitos com os frutos do seu suor, e que lhe causava grande contrariedade constatar que trabalhara para um aproveitador das mulheres simples que lhe confiavam as almas. Nunca participava destas pequenas refeições com que elas presenteavam o padre, e respondia com monossílabos rudes às inquirições do pároco sempre que, por azar, não tinha conseguido sair a tempo para os campos antes da sua chegada. Este, com a finura de um homem de negócios que mede o potencial de um cliente, tinha imediatamente percebido que estava a lidar com alguém que sabia o que ele era. E não insistia. O agricultor possante era o livre-pensador de que vinha oficiar as exéquias, e em pensamento esfregava as mãos de contente porque ele não conseguira manter-se até ao fim insensível perante a perspectiva de um juízo divino. O padre sorriu. Saíra vencedor.

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