domingo, 1 de maio de 2016

A mesma coisa

And yet there on
the other shore
under the dark gaze
sun in your eyes
you were there
the other side
the other dawn
the other birth
& yet there you were
in the vast
time
by drop"

~ Cy Twombly

Durante as invasões de Napoleão, um homem saiu de Portugal, da Serra da Estrela. Regressou mais tarde e com ele, na sela do seu cavalo, veio uma mulher italiana. Os dois tiveram filhos e a sua história foi contada pelos filhos aos seus filhos e depois aos filhos destes, até que chegou à minha avó paterna. Eu não a conheci, porque ela faleceu em 1959, quando o meu pai tinha 15 anos; mas quem vê a foto dela diz que eu sou a sua cara "chapada". Foi o meu tio, irmão do meu pai, que me contou a história destes meus antepassados várias vezes. O meu pai não a contava, talvez por ter bloqueado várias memórias da mãe dele, pois ela morreu quando ele ainda era tão novo.

Penso muitas vezes na história destes dois porque é uma história de amor e o amor deles deve ter sido tão forte que a sua própria história ganhou vida e transcendeu o espaço e o tempo, indo de boca em boca, até chegar a mim. Às vezes conto-a a amigos, se calha na conversa, e no outro dia contei-a ao Luís Gaspar, que achou que eu a devia contar a vós. Já tinha pensado em contá-la, mas não tinha encontrado vontade para me sentar e escrevê-la. Hoje a meio da manhã, quase que a escrevi, porque achei que seria uma boa história para fechar Abril e pensei muito nela.

Não cheguei a escrevê-la. Em vez disso, fui visitar o Menil, o Museu de Arte Moderna, do qual já vos falei. Na Quinta-feira à noite, no convívio dos portugueses em Houston, alguém disse que o melhor museu da cidade é o Menil. É o meu preferido, acho que já vos disse, e ao ouvir isso da boca de outra pessoa, em português, apeteceu-me ir lá outra vez -- já perdi a conta de quantas vezes lá fui. Hoje não me esqueci de ir à Galeria de Cy Twombly, que faz parte da colecção do Menil e fica mesmo ao lado. Nunca lá tinha ido (não sei bem o porquê desta minha falha).

Foi nessa galeria, num dos paineis pintados por Twombly, que encontrei o poema que vos escrevi em cima. Como não é permitido tirar fotografias, ajoelhei-me no chão à frente dele, e transcrevi-o no meu diário. Depois de completar a minha visita, atravessei a rua e o jardim e fui à Capela de Rothko. Foi a minha segunda vez a ir lá. A primeira ocorreu em Maio de 2014, quando uma amiga me veio visitar por ocasião do meu aniversário. Não gostei da experiência porque havia muita gente no espaço e como eu estava com companhia, não estava relaxada o suficiente para apreciar Rothko. Nessa altura, pareceu-me um espaço muito opressivo e frio, um contraste absoluto com a mensagem à porta.

Hoje havia três pessoas na capela para além de mim -- é uma capela não denominacional. Quando entrei, reparei na luminosidade dos quadros violeta, apesar de serem pintados em tons muito escuros. A capela é iluminada por luz natural que entra por uma clarabóia no tecto, debaixo da qual está uma estrutura que difunde a luz. Todos os dias são diferentes porque todos os dias a luz é diferente, mesmo ao longo do dia. Senti-me feliz e em paz por estar, àquela hora, naquele espaço, onde senti que o silêncio me abraçava. "Silence is so accurate" disse Mark Rothko, e esse silêncio hoje foi-o muito.

Passei pela loja do Menil onde apenas comprei dois postais. Decidi ir tomar café à Rice Village porque andava à procura de coisas para uma amiga que mudou de casa recentemente. Achei que talvez a Ten Thousand Villages, uma loja que vende artigos feitos por mulheres artesãs em países em desenvolvimento, tivesse algo interessante. Depois de sair da loja, notei que o meu telefone tinha vibrado. Era um SMS da minha prima que está na Holanda. A última vez que a vi foi em Amsterdão, em Abril de 2013. Tive oportunidade de ver o meu tio nessa viagem e de lhe perguntar mais histórias sobre a nossa família. Perguntei-lhe o que fazia o meu bisavô Carreira. Era agricultor, mas quando começou a sofrer de reumatismo, abriu uma loja onde fazia reparações. Acho que o meu interesse pela agricultura e biscates deve ter vindo dele.

O meu tio sempre foi muito importante para mim. Ele costumava visitar-nos de seis em seis meses e trazia com ele cerveja holandesa e uma bola de queijo Edam. Para mim e para a minha irmã, trazia dois sacos de bombons de chocolate com licor. Eu tentava comer um ou dois por dia para que durassem muito, mas era frequente a minha irmã comer os dela num ápice e depois comer os meus, o que eu achava uma grande injustiça. Queixava-me à minha mãe, que me dizia que eu devia ter comido os meus mais depressa. Aquela solução parecia-me injusta.

Havia também as histórias de como era a vida na Holanda, que causas sociais estavam a ser discutidas, etc. Era ateu, mas os holandeses pensavam que ele era judeu descendente dos portugueses que fugiram à Inquisição portuguesa. A minha avó, mãe do meu tio, é descendente dos judeus que fugiram da Inquisição espanhola e foram para Portugal. O meu tio gostava de me dar ideias provocadoras; por exemplo, dizia-me que andar com crucifixos ao pescoço não fazia sentido, pois a cruz era um instrumento de pena de morte, assim como uma cadeira eléctrica. Mas, todos os Natais, enviava um postal de Boas Festas. A seu pedido, tratava-o pelo seu primeiro nome e não por tio, apesar de ser 41 anos mais velho do que eu. Uma vez disse-me que eu movimentava-me como uma americana, isto antes de eu ter visitado os EUA pela primeira vez. Quando vim para aqui, não ficou surpreendido, achou que era uma mudança natural para mim.

O Pedro Mexia uma vez escreveu:

"As pessoas dão demasiada importância à primeira vez. E a última vez? Ninguém pergunta pela última vez. A última. A última de todas. A última das últimas. A última depois da qual não há mais nenhuma."

Noto as últimas vezes. Quando fui a Amsterdão e vi o meu tio, soube que essa seria quase de certeza a última vez. Já estava débil fisicamente, mas o cérebro ainda estava bastante lúcido, e sentia-se frustrado por o corpo ter deixado de cooperar, apesar de já ter 80 anos. Quando nos despedimos, dei-lhe um abraço e um beijo. Ao afastarmo-nos, ele tocou-me no braço outra vez para me dizer que tocar no meu corpo era o mesmo que tocar no corpo dele: os nossos corpos eram o mesmo porque eramos família. Comecei a chorar e fiquei sem palavras. Essa foi a última vez.

O SMS da minha prima, que eu recebi às 16h58, era para dizer que o meu tio morreu hoje. Morreu em paz, provavelmente adormeceu, pois foi encontrado com os olhos fechados, numa posição relaxada sobre um colchão, entre as 16h30 e as 18h30 de Amsterdão, ao final da manhã de Houston, quando eu estava a pensar escrever a história de amor que ele me contou. Suponho que, quando amamos alguém muito, nunca estamos muito afastados da pessoa. A distância física não é um impedimento para quem se ama e, para além disso, eu e o meu tio somos a mesma coisa.

30 de Abril de 2016

Sem comentários:

Enviar um comentário

Não são permitidos comentários anónimos.