sábado, 9 de abril de 2016

Um caso paradigmático sobre o estatuto jusconstitucional das Forças Armadas

O recente episódio do pedido de exoneração do Chefe do Estado-Maior do Exército, alegadamente em função do modo como o Ministro da Defesa Nacional, Azeredo Lopes, o terá “repreendido publicamente”, através de um comunicado de imprensa em que afirmava que as supostas discriminações em função da orientação sexual no Colégio Militar deviam ser objecto de aturada investigação, é um caso paradigmático de que, mesmo após 40 anos de vigência da Constituição de 1976, ainda permanecem equívocos quanto ao modo de relacionamento entre as Forças Armadas (FA) e o dito “poder político”.

A Lei Fundamental que os Portugueses se deram a si mesmos, através da representação democrática dos deputados à Constituinte, sobretudo com a 1.ª Revisão Constitucional de 1982, terminou com a inicial supremacia das FA sobre o poder político civil, o que se compreende tendo em conta a génese da Revolução de Abril, o “Manifesto do MFA” e o “Pacto MFA-Partidos”. Todavia, extinto o Conselho da Revolução e entrando Portugal na normalidade democrática, em especial com a preparação da adesão às então CEE, ficou claríssimo no texto constitucional e nas leis ordinárias que as FA se subordinam democraticamente aos órgãos de soberania.

Assim, o seu Comando Supremo foi colocado nas mãos do Presidente da República, o qual preside ao Conselho Superior de Defesa Nacional, bem como nomeia, sob proposta do Governo, o Chefe do Estado-Maior-General e, também ouvido este, os Chefes do Estado-Maior dos três ramos das FA (cf. artigos 120.º, 133.º, al. p), 134.º, al. a), e 274.º, n.º 1, da CRP). Em matéria legislativa essencial a este órgão do Estado – que não de soberania, sublinhe-se – reservou-se a competência absoluta para a Assembleia da República, o que significa que lhe foi atribuído relevo tal que nem através de lei de autorização pode o Governo sobre ela legislar (art. 164.º, al. d)). As específicas funções das FA estão definidas no art. 273.º, n.º 2: “garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais, a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas.”. É expressa a sua subordinação ao poder político democrático: “[a]s Forças Armadas obedecem aos órgãos de soberania competentes, nos termos da Constituição e da lei.” (art. 275.º, n.º 3).

Não oferece dúvidas, pois, que qualquer comunicado sobre alegados factos ocorridos em estabelecimento de ensino e formação tutelado pelo Exército não exorbita as funções do Ministro da respectiva pasta. Coisa diversa é se politicamente tal foi avisado. Não parece ter sido. Pela delicadeza da matéria e pelo essencial equilíbrio de “checks and balances” entre os políticos e os operacionais, o dito comunicado – por certo bem-intencionado e com o desiderato de afirmar a luta contra a discriminação em que todos estamos empenhados – não deixa de comportar a leitura de um “puxão de orelhas”. A existirem, ocorrem em privado, do mesmo modo que o comentário a notícias em áreas da governação como esta deve ser visto em conjunto entre o Ministro da Defesa e as chefias militares.

Se o Sr. General Carlos Jerónimo se sentiu ultrapassado e/ou ferido na sua honra, não lhe restava outra solução. Já não é jurídico-constitucionalmente ou suportável do prisma político que a chamada “família militar” se exalte e, em alguns comentários, pareça esquecer o que acima se vincou: os militares, essenciais ao Estado de Direito, recebem instruções e ordens político-administrativas – que não técnico-operacionais, por certo – do Governo, do Parlamento e do Presidente da República. Do mesmo passo que, em crimes de natureza militar, as FA cumprem escrupulosamente as decisões dos Tribunais que, desde a Revisão Constitucional de 1997 – e bem –, só constituem categoria jurisdicional autónoma em tempo de guerra. Em tempo de paz, esta espécie de delitos é julgada nos Tribunais judiciais, com intervenção de juízes militares, a par dos civis.

Se todos cumprirem as suas competências, com respeito interinstitucional e com tacto político, só teremos a ganhar com umas FA que compreendem que estar subordinadas aos órgãos de soberania não é qualquer “capitis deminutio”; ao invés, é penhor da sua própria liberdade e de todos os cidadãos. Do mesmo passo que a qualquer Ministro – e os últimos dias têm sido prolixos – se exige “sensibilidade e bom senso”. Ao fim e ao cabo, os “middle names” de qualquer membro de um órgão de soberania responsável pelo poder executivo…

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