quarta-feira, 23 de março de 2016

História gótica

9. "A minha garganta está seca como  cinzas. Dá-me mais um copo desta mistela, estalajadeiro, hoje até isto me sabe bem.
E mais outro, já agora, nem vale a pena guardares a garrafa. Deixa-a aqui que eu vou-me servindo. Isso. Não, não quero comer nada. Nem que quisesse. Não consigo engolir. Nesta garganta só entra aguardente. Mais um copo, a ver se me passa esta secura. Nem percebo por que estou assim ressequido, percebia melhor se tivesse ficado cego, ou mudo. Ou paralítico. Sim senhor, estão a fazer cara de espanto e fazem muito bem. Se eu contar, então, hão-de cair-vos os olhos, de tão abertos. Conto já, primeiro há que molhar a garganta. Não senhor, não sou da cidade. Venho de mais longe, da aldeia de f., perto de l. Pois, nunca me tinha visto, é natural. Cheguei há dois dias e nem procurei hospedagem em lado nenhum. Vim com um agricultor que voltava da cidade de carroça vazia, não trouxe cavalo. Ando a pé por esta região há já vários meses, à procura. Mais um copo e já conto. Não sei se deva, mas conto. Isto tem que me sair da garganta, esta coisa daninha. Pois é, pergunta o senhor muito bem, que posso eu ter para contar que os senhores não tenham já ouvido, o que é que pode ter acontecido que não tenha já acontecido, o que é que pode haver para saber que não se tenha já sabido. Compreendo a sua desconfiança. Eu, no seu lugar, estaria tão céptico como o senhor. Já fui céptico, um céptico empedernido, nem ver para crer, nem experimentar me serviam, por trás de tudo podia estar sempre outra coisa, um embuste qualquer, uma ilusão, e nós até poderíamos nunca vir a distinguir o que parece e o que é. Ria-me das criadas supersticiosas que nunca arrumavam os sapatos fora de ordem e das devoções das tias sempre que perdiam dedais e rezavam a Santo António. Uma vez, em criança, um primo quis convencer-me de que havia um espírito desencarnado no sótão. Quis ir ver. Fomos os dois de noite, com umas velas, cada um com a sua fisga no bolso, o meu primo ia ficando sem dentes de tanto baterem uns contra os outros. Chegámos lá e o fantasma era uma ratazana tão grande que era capaz de empurrar um banco velho que por ali estava. O meu primo queria acertar-lhe com a fisga, mas eu disse-lhe que se fizesse isso então é que ia ver o que era um fantasma, quando a ratazana viesse do reino dos mortos roer-lhe os dedos dos pés até ao osso. E aí, não havia fisga que te valesse, disse-lhe. Os crédulos deixam-se enganar até depois de terem sido desenganados. E os cépticos continuam cépticos, mesmo se não tivessem visto ratazanas a empurrar móveis. Até terem visto o que eu vi."

1 comentário:

  1. Vamos lá ver se depois de emborcar a garrafa de agua-ardente, ainda vai ter discernimento para contar o que viu...

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