terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Reportagem 8

Os habitantes de c-de-b puderam hoje finalmente descansar de mais de duas semanas de noites mal dormidas e incursões infrutíferas ao posto local da Guarda. 
A causa de toda esta inquietação consistiu numa sucessão de fenómenos inusitados que, tendo começado à distância sobre uma pedreira adjacente, sob a forma de luzes de várias cores "dançando nos céus", nas palavras de uma testemunha, se foi aproximando da localidade até se instalar nas casas e lojas sob a forma das ditas luzes de várias cores, de ruídos agudos e ruídos arrastados, e de aparições. A causa ou causas da causa de toda esta inquietação estão ainda por apurar e no povoado as opiniões dividem-se. Nas tertúlias nos cafés, nas esquinas das ruas, nas filas no posto dos correios, há discussões animadas, e mais animadas agora que os fenómenos já não se fazem sentir, nas quais se digladiam diferentes escolas de pensamento tentando subjugar os adversários e os cépticos com uma torrente de argumentos e casos empíricos que sustentem o seu partido. Como se disse acima, agora que os estranhos fenómenos pertencem já ao passado, as posições vão assumindo carácter cada vez mais veemente e estrídulo pois com o passar deles parece ter passado também o medo supersticioso de que a arrogância de formular uma explicação fosse punida com uma atenção especial por parte de entidades tão torturantes. Ainda assim, há quem continue a benzer-se a cada menção do terrível mistério, "não vá o diabo tecê-las", confidenciou ao repórter um dos defensores do partido de uma explicação sobrenatural, alínea iconografia cristã. Outros que sustentam também haver forças inexplicáveis envolvidas preferem um ponto de vista mais pagão, para escândalo dos anteriormente mencionados, ponto de vista este que, por sua vez, se subdivide naqueles que afirmam a acção de bruxarias e mau olhado e naqueles que contrapõem a operação de espíritos desencarnados procurando, vingança, de acordo com uma subdivisão desta subdivisão, ou repouso, segundo outra. Há uma terceira subdivisão da ala pagã, a saber, os politeístas. Os cristãos, por sua vez, exibem uma facção católica, uma facção protestante, uma facção ortodoxa e uma facção copta. As alíneas judaica e muçulmana da explicação sobrenatural estão claramente sub-representadas. Já os defensores de explicações naturalistas dividem-se naqueles que defendem uma comunicação extra-terrestre, naqueles que esperam ser a física a ciência que virá a dar conta do ocorrido, e naqueles que reduzem os eventos a causas psicológicas. A este último grupo pertencem três diferentes perspectivas, a saber, a freudiana, que sublinha a importância dos traumas infantis, a junguiana, que tende para as alucinações colectivas, e a das ciências cognitivas, que aponta para desequilíbrios químicos no cérebro. Tal como acontece no caso da categoria da explicação sobrenatural, neste subgrupo de reducionistas psicológicos estão sub-representados os behavioristas e os sucessores destes, os cognitivistas comportamentais. Ao longo das acaloradas disputas, D. T, figura com autoridade no lugar, consegue apenas exclamar "ai jesus", o que parece colocá-la firmemente no campo das explicações sobrenaturais, alínea iconografia cristã, mas permite dúvida acerca da subdivisão de cristianismo que advoga, já que a facção protestante rejeita o recurso a intermediários entre os crentes e a divindade mas dá especial importância à figura de jesus, e já que a expressão é comum entre católicos que, de acordo com um argumento etnográfico, constituem maioria por terras peninsulares. Das outras confissões cristãs não se sabe o suficiente para que seja possível situá-la nelas, mas o total desconhecimento por parte de D. T destas formas exóticas de cristianismo é evidência forte de que não é necessário tê-las em conta. Os teóricos da conspiração constituem um terceiro subgrupo das explicações naturalistas, de pendor mais sócio-político do que científico, atrevemos-nos a dizer, correndo o risco de ter de enfrentar a indignação dos partidários deste ponto de vista, que reagem mal sempre que lhes é posta em causa a cientificidade. Há ainda os cépticos que rejeitam que haja forma de fundamentar qualquer explicação e, suspendendo o juízo, se dedicam à escrita de elegias.

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