sábado, 21 de junho de 2014

O lançamento do livro “O Coração da Memória”

O CORAÇÃO DA MEMÓRIA
NA FESTA DA AMIZADE

Vou procurar ser breve, como convém neste momento solene. As pala­vras já pouco dizem ou tornam-se inábeis para retroverter ou traduzir os sentimentos que se me guerreiam no íntimo. O meu Amigo José Manuel Medei­ros Ferreira não ti­nha o di­reito de nos dizer adeus tão cedo – faz hoje preci­samente três meses que foi restituído à terra. Nem ele nem o Viri­ato, que ainda teve mais pressa e lá se foi há mais de três anos… Fui um privilegiado em ter en­contrado e convi­vido muito de perto com o M. Ferreira. Com ele e com o Vi­riato, formáva­mos o trio da Biblioteca. Aí passámos muitas ho­ras feriadas, sentados no estrado ao fundo, o do piano, ou­vindo o Viriato re­ci­tando poesia ou lendo páginas de Eça de Queirós…

No estreito convívio diário que mantivemos até ao último ano do Curso Comple­mentar de Letras, tornei-me mais rico e com ele fui ama­durecendo intelectualmente ao longo dos lentos, muito lentos anos dos estudos e da adolescência. Escu­tava-o nas suas sérias e simultanea­mente chisto­sas prelecções cuja temá­tica abar­cava os mais desvairados assuntos – da política à História, do fute­bol à Filosofia, do cinema ao humor. Humor que lhe brotava natu­ral como uma fonte que se abre em rocha bíblica tocada por uma vari­nha de condão. Cultivava-o, buri­lando-o, com a um dia­mante bruto, e apri­morava-o com a seriedade com que esta superior capaci­dade do espírito hu­mano merece ser tra­tada.

Ele sabia muito bem que rir é uma coisa séria, para utilizar uma expres­são que serve de título a um livro cujo Autor agora me escapa… E as­sim se desanuvia­ram muitas das som­bras teimosas que me pairavam sobre o motor da mente… À beira do Medei­ros Ferreira, não ha­via, nem po­dia ha­ver lugar para som­brias triste­zas, muito menos lamechas… Fomos cole­gas e ami­gos ínti­mos entre dois pólos da vida: 1956 e 2014, isto é, entre o ano primeiro da sua en­trada no então Liceu Nacional de Ponta Delgada, vindo desta Vila, onde con­cluiu o segundo ano do Externato, e o ano último da sua vida, ocorrido no dia 18 de Março do corrente ano.

Apesar da sua intrínseca alegria e boa disposição, também era capaz de uma lágrima comovida. Vou con­tar-vos um episó­dio passado em 2 de Maio de 1991. Tínha­mos chegado dias antes, a con­vite do Conse­lho Directivo da já Escola Secundária de Antero de Quental. Vínhamos proferir uma conferên­cia so­bre o tema que nos fora antecipadamente sugerido: “A Aprendizagem In­sular da Cul­tura”, integrada no 1.º Centenário da morte de Antero de Quental. O evento cultural realizou-se no Salão Nobre da Biblioteca, em 29 de Abril, e repe­tiu-se no dia seguinte. Viéramos ambos e mais três escritores da Ilha, antigos alunos e há muito fixados no Continente, apresentar contas do destino que havíamos dado ao que aprendêra­mos durante os anos que vivêramos na Ilha e no Liceu. Lembro-me de que a dada al­tura da sua comuni­cação o Medei­ros Ferreira, em homenagem ao se­nhor Augusto Moura, professor de ginástica, citou-lhe uma frase lapidar: «Passa a bola, Ferreira; olha que a bola corre mais depressa do que o ho­mem…» E a bola com que a vida e o tempo se entretêm a jo­gar ou a jogar-nos também cavalga muito mais cé­lere do aquele que a vai vi­vendo.

Fiz sem querer um desvio no caminho. Estava con­tando que o meu Amigo Medeiros Ferreira, ape­sar de galhofar e de rir e de ironi­zar e de fazer os outros rir, era também capaz de uma lágrima emocionada. Aconteceu no dia 2 de Maio, no dia seguinte ao do fune­ral do Doutor Ruy Galvão de Carvalho, professor de História e Filosofia. Durante os dois dias das conferências, ocorreu o reencon­tro dos três ami­gos do peito: o Viri­ato, o Fer­reira e eu. Não nos encontrávamos assim de uma assen­tada havia cerca de trinta anos. Por mo­mentos senti ou quis sentir ou fingi que senti que, afi­nal, poderia a vida ofe­recer-nos um retorno... E viemos os três à Vila, a esta mesma onde agora nos encontramos e que deve­ria, em devido tempo, ter subido à categoria de ci­dade. Viemos, aqui, em romagem afectiva, que o Ferreira passara aqui parte da sua infância e adolescência, e desejava reencon­trar-se nas ruas que cal­correara e nos sítios onde convivia com os seus colegas com quem jogava ao futebol… Fomos per­correr os seus luga­res sagrados, cujas raízes aprumadas lhe ficaram fincadas na recordação, palavra que significa chamar ao cora­ção. Até nos foi mos­trar o largo portão de madeira, a tinta verde já descas­cada, con­tra o qual chutava a bola para trei­nar o pé e o remate antes de se ir juntar aos companheiros das renhidas partidas de futebol. Não sei se ele se encontrou, mas é de crer que não! Não lhe pergun­tei. Há perguntas que se não fa­zem, sobretudo quando se pressente ou se vê um rosto perturbado pela emo­ção e se sente nele uma saudade contida. Dessa vez, não tivemos aldân­cia de subir até ao alto da Senhora da Paz. Cansaço de tantas emoções? É natural… À socapa, acenei-lhe eu cá de baixo, e Ela sorriu-me do seu trono de altura. Senti que nos tinha per­doado o pecadilho de não termos ido lá a cima cum­primentá-la...

À tarde, na derradeira digres­são ao longo da Avenida Margi­nal da Cidade, antes da despedida e do destro­çar, desfez-se o que ainda sobejava das muitas ilusões que nos haviam habitado nesse já longínqua tarde na Vila... Um chuvisco de tristeza transformado em lágri­mas que teimaram em aflorar, decerto para lavar uma má­goa que não tinha nome. Fiquei, ficámos fragilizados, um nevoeiro ensopado toldando os olhos. Afinal, pensei eu, não há retornos, tudo o que passa se torna irremediável!

Terá sido a última vez que o trio da Biblioteca se reuniu. Encontrávamo-nos, sim, mas em separado. Ora com um, ora com o outro. Não há retornos, ouço-me de novo. E recolho-me. O fu­turo já não me existe…

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