quarta-feira, 18 de setembro de 2013

DESANIVERSÁRIO


Tarde soalhenta da Senhora da Boa Nova. Em Sua Igreja pre­guei, ontem à noite, o sermão que me faltava para ser um não crente ungido do Senhor. Sobraram-me palavras e gestos de pão consagrado. Trouxe-os comigo e multipliquei-os em tua memória… Estendi-os no fio, a secar, e observo-os agora daqui, de frente para o Canal: Pressinto-os humedecidos do sol que se não cansa de aquecer esta saborosa solidão. Sabes, meu amor, ele já não me in­sulta os olhos e nunca me escaldou a pele enquanto teu ventre foi a se­creta e serena morada do meu não-ser à beira-ser. Dentro de poucas horas chegará a Ti Custódia, a aparadeira da freguesia, vem arrancar-me ao meu solaz bem-estar. A Banda de Música re­organizará seus tocadores já todos tão mortos e tão ossadas, e de novo tocará rua acima a mesma marcha arrebitada… Regressa da procissão de Nossa Senhora da Luz, nos Fenais. O relógio de pa­rede deixa-se de novo ador­mecer na prateleira do canto do quarto, entorpecido pela melodia afi­nada do passo dobrado que se eleva do caminho até à estrelinha do céu que minha Mãe escolheu só para mim. Vai o relógio de pontei­ros lassos des­pertar em so­bres­salto com as ba­tidas das nove ho­ras da noite desse Domingo tão arredado e cada vez mais perto. Meia hora falta apenas para que se cumpra o tempo  ini­ciará uma desati­nada cavalgada que depressa vai alcançar a meta dos se­tenta e três ba­timentos de um coração tão velho e tão hoje, só o algarismo mais pequeno pôs um acento circunflexo, re­flexivo, tudo o resto ganhou gigas de perdas e danos… Cansa­dos os olhos de te não olhar e as mãos e os dedos de te não viajar o corpo e a boca de te não beijar  re­costo-me no ombro da lem­brança das palavras cantadas ou conta­das por ti, Mãe! Com elas me embalarei e descerei os de­graus do sono. Hei-de acordar-me para continuar a ver-te através da nesga do fu­turo tão curto que ainda se não cerrou. Sinto ainda as pala­vras. Quero prendê-las e sonhá-las. Não vou consentir que se po­nham em de­bandada. Não! Em surdina, descansas-me: ainda é cedo, murmuras-me, falta-te cumprir um excedente de destino...

Cristóvão de Aguiar
Ilha do Pico, 8 de Setembro de 2013

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