domingo, 19 de maio de 2013

Confusões sobre Segurança Social e suas fontes de financiamento

Ricardo Reis, respondendo a um artigo de Fernanda Câncio, explica por que motivo não é razoável tratar o subsídio de desemprego e as pensões da mesma forma. Para os objectivos pretendidos, o artigo é claro e está bem escrito.
No entanto, um dos principais debates que Portugal vive de momento é sobre o sistema de financiamento da Segurança Social. Há cada vez mais vozes a pedirem para que se passe de um sistema de repartição para um sistema de capitalização. Nesse aspecto, infelizmente, artigo de Ricardo Reis contribui (bem) mais para confundir do que para esclarecer. O artigo é escrito como se o actual sistema fosse de capitalização, com cada geração a poupar para as suas reformas futuras, quando, obviamente, o que se passa é o contrário: cada geração no activo financia as reformas das gerações que estão reformadas.

16 comentários:

  1. É-me difícil compreender a razão pela qual um economista tão reputado ignora algo que eu, um simples amador, sei desde sempre, ou seja, que o nossos sistema de pensões não é um sistema de aforro.
    Esta crónica faz-me pensar o seguinte: quem me garante que em outras ocasiões Ricardo Reis ou outros cronistas defendam posições similares que eu, como simples leitor não economista, não consigo criticar e tomá-las como boas ou pelo menos dignas de servirem como "food for thought"?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Paulo, ele não ignora. Simplesmente, para o debate subsídio de desemprego pensões, que era o tema do seu artigo, tal distinção era irrelevante.
      O meu problema é que esse não é o debate mais importante a decorrer, e que essa falta de cuidado a distinguir as diferentes situações pode contaminar as discussões.

      Eliminar
  2. Na verdade por muitas "cambalhotas financeiras" que se queira dar são sempre as gerações no activo que financiam as reformas. Sempre. Ninguém "come" dinheiro. Os investimentos, as poupanças e as capitalizações só se convertem em riqueza real, em cada instante momento, se as gerações no activo realizarem a conversão dessas poupanças em bens reais através do seu próprio trabalho. Nas circunstâncias actuais, dada complexidade da sociedade, isso só acontece se a economia crescer o suficiente. Mas se a economia crescer o suficiente, o sistema actual continuará a funcionar. E provalmente de forma mais eficiente já que não é necessário utilizar parte dos fundos para as remunerações generosas da "indústria de capitalização". A questão que se trata é, na verdade, quem é que vai controlar os fundos de reformas.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. "Os investimentos, as poupanças e as capitalizações só se convertem em riqueza real, em cada instante momento, se as gerações no activo realizarem a conversão dessas poupanças em bens reais através do seu próprio trabalho."

      Isso não é correcto. Está a esquecer-se de que o trabalho não é o único factor de produção. Assim, o produto final é, e reconheço que estou a ser simplista, é dividido entre capital e trabalho. Com um sistema de capitalização, as reformas são financiadas não à custa do factor trabalho mas sim à custa do factor capital.
      (Para não falar de outras hipóteses, como, por exemplo, os investimentos serem feitos em outro países levando a que as reformas sejam pagas com a produção de outros países).

      Eliminar
    2. Sim, sem dúvida, mas no fim, nos outros países, a conversão do capital em riqueza real (através do trabalho, não há alternativa) tem de ser feita em algum lado, e pela geração no activo que é aquela que produz riqueza real. Ninguém consegue alimentar-se de "capital" nem abrigar-se das intempéries directa e literalmente com o "capital". Pode chamar a isto que estou a dizer, à laia de brincadeira, de fisiocratismo generalizado. A modelação da realidade económica tem de incluir esse passo de conversão, se não quiser limitar-se a descrever mundos ideais.


      Só que a hipótese de que os investimentos serem feitos noutros países tem alguns problemas. Primeiro, em geral, não terás controlo económico ou político no que acontece nesses países, pelo que esses investimentos são conceptualmente quase idênticos a ir jogar o teu capital num casino (um casino gigantesco e muito sofisticado, mas um casino em qualquer caso). Razão pela qual poderá ser, em geral, razoável clocar uma pequena fracção do bolo (5%, 10% no máximo) em investimentos desse tipo, mas nunca, nunca é racional colocar uma fracção considerável do nosso capital em tais investimentos. Segundo, nas circunstâncias actuais, acresce o risco sistémico associado ao sistema financeiro mundial que ninguém, em parte alguma do mundo, está em posição de compreender e ainda menos de controlar. Terceiro, associado a esse risco sistémico descontrolado, está o aumento constante da razão da dívida em relação ao PIB nas economias ocidentais, que desde o princípio dos anos 70 apresenta uma tendência média de aumento com períodos de evolução super-exponencial. Não temos nenhum motivo para esperar que essa tendência se vá inverter de forma sustentável; pelo contrário, existe uma probabilidade razoável de que uma nova crise financeira venha a acontecer durante a próxima década.

      Eliminar
    3. "Ninguém consegue alimentar-se de 'capital'"

      Não percebi, tirando os canibais, também ninguém se alimenta do trabalho.
      O que é relevante é como é distribuída a produção (aqui até podíamos falar de mais-valias). E a produção é distribuída entre trabalho e capital. Ou, se quiser falar em pessoas, entre trabalhadores e capitalistas.
      Num sistema como o actual, as pensões de reforma são financiadas com descontos sobre os salários, e reconheço que estou a ser simplista, logo as reformas são feitas à custa dos trabalhadores, que vêem a parte do produto que lhes está reservada diminuir.
      Num sistema de capitalização, os reformados são capitalistas e são remunerados enquanto tal, pelo que a parte do produto que lhes cabe não é retirada aos trabalhadores.
      E repare que este meu argumento é independente de considerar que o bolo a distribuir é maior num ou noutro caso. Se bem que eu considero que os aumentos de poupança gerados num sistema de capitalização, por si só, levarão a aumentos de produção, mas esse é outro tipo de discussão.

      (Quanto à questão dos investimentos no estrangeiro não ligue. Isso era só um aparte, por isso é que estava dentro de parêntesis, tal como agora)

      Eliminar
    4. Luís, desculpe se não me expliquei bem. Estou a fazer uma descrição a um nível de abstracção mais baixo do que a descrição económica propriamente dita com os seus conceitos económicos de trabalho, capital, etc (que é uma idealização da realidade, legítima para certos objectivos, mas que não é a realidade tal qual). O que eu quero dizer é que, nesse passo anterior de abstracção, é preciso incluir a descrição "física" (e não de "teoria económica") que consiste na produção concreta (com as mãos, as máquinas) da comida, a construção e manutenção da habitação, das estradas, mais a prestração de serviços variados, mais a produção científica e tecnológica, cultural, etc. Isso tudo é concretamente feito por pessoas que pertencem à geração no activo. Sempre. Por definição. Toda a gente o sabe. O que eu queria apontar é para a consequência: a riqueza consumida por toda a gente no instante t é produzida directamente pela geração no activo. É ela que converte concretamente os valores abstractos de dinheiro, capital, mais-valia (que não são reais antes desse passo) em bens reais. Por isso, tudo depende das suas escolhas (ou não escolhas) sócio-políticas e convém então colocar a questão nesses termos.

      Eliminar
    5. Parece-me que quando digo que os diferentes sistemas de financiamento da SS implicam diferentes repartições do Produto estou a ter em atenção aquilo para que está a chamar a atenção. O que já não digo, e isso pareceu-me implícito no seu primeiro comentário, é que qualquer repartição que favoreça os reformados será conseguida à custa dos trabalhadores, como se o bolo fosse apenas distribuído entre trabalhadores e pensionistas.

      Eliminar
  3. Sinceramente, penso que se estão a confundir duas questões:

    [a] A forma como deve ser calculada o valor da pensão a atribuir aos reformados.

    A situação actual é que em teoria seja um valor fixo que deveria depender da totalidade da carreira contributiva. Porém existem vários subsistemas intermédios, em que se foram acomulando “direitos de saque” sobre as reformas, ocasionalmente sem contrapartidas de contribuição ou em termos diferentes dos restantes, ao mesmo tempo que tem se acomulando também as alterações sobre a forma de calcular esses direitos, geralmente para os diminuir. Acresce o facto que o valor de contribuição pago ao longo do tempo foi se alterando, bem como o valor de contribuição pago (quando o foi) pela entidade patronal. Esta situação leva a que seja impossível, ou quase, alguém conseguir saber qual o valor real de reforma que “deve receber”. Acresce que prometer um valor fixo pode ser irrealista em relação a [b]

    [b] A forma como operacionalizar o pagamento dessas pensões (como ter dinheiro para as pagar)

    Actualmente sim, temos um sistema de redistribuição quase puro, uma vez que os fundos de capitalização da segurança social e dos diversos outros subsistemas lá integrados foram sucessivamente usados pelos governos para fazer face a necessidades de financiamento de outras componentes – geralmente sem conceder a esses fundos explicitamente titulos de dívida pública em contrapartida. Acresce que os valores nunca foram muito grandes (nunca chegaram para fazer face às necessidades de pagamento). Uma alternativa a usar a redistribuição seria efectivamente aumentar os fundos de capitalização.

    No entanto não percebo porque é que a forma de operacionalizar as reformas (pagar diretamente com os juros/capital do capitalizado ou usar as contribuições ao longo do tempo para várias coisas, incluindo pagar pensões) é a decisão mais importante. A questão é decidir como é que o valor deve ser calculado, se deve existir alguma actualização (automática) em função da capacidade da economia de fornecer esses pagamentos e ou da evolução dos rendimentos (ajustar [a] em função de [b]).

    Valores mínimos e máximos também poderão ser considerados (embora considere que diferencial entre o valor pela contribuição para o valor mínimo deverá ser suportado directamente pelo orçamento do estado).

    ResponderEliminar
  4. "No entanto não percebo porque é que a forma de operacionalizar as reformas (pagar diretamente com os juros/capital do capitalizado ou usar as contribuições ao longo do tempo para várias coisas, incluindo pagar pensões) é a decisão mais importante. A questão é decidir como é que o valor deve ser calculado, se deve existir alguma actualização (automática) em função da capacidade da economia de fornecer esses pagamentos e ou da evolução dos rendimentos (ajustar [a] em função de [b])."

    [a] e [b] não são independentes. Aliás, até me parece um pouco exotérica essa ideia de achar que o valor das pensões é independente da sua forma de financiamento, para ser sincero.
    É provável que num futuro próximo eu escreva um artigo sobre o assunto.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. "achar que o valor das pensões é independente da sua forma de financiamento"

      Mas o valor das pensões é realmente independente da sua forma de financiamente, é dependente apenas do valor disponível para o seu financiamento. Ou seja [b] define o envelope dentro do qual é necessário encontrar [a] (que pode passar por pensões fixas ou ajustadas ao envelope [b], como disse).

      Eliminar
    2. "é dependente apenas do valor disponível para o seu financiamento"

      É dependente disso, mas não só disso. Isso, quando muito, é um tecto acima do qual não se pode passar em termos agregados.
      De qualquer forma, e dando de barato esta alegação, o valor disponível para o seu financiamento depende crucialmente da forma escolhida para o financiamento.

      Eliminar
    3. Esclarecendo:

      se [b] indica que temos 12 para pagar no ano 2050, e apenas 9 para pagar no ano 2051 (estamos a falar do valor disponível em função das capacidades de pagamento da economia e assumindo a sustentabilidade dos investimentos necessários - ou seja, este é o valor realmente disponível para este fim)

      temos apenas 2 pensionistas (don't ask). X com contribuições que lhe "dariam" a pensão 2p e Y com contribuições que lhe "dariam" a pensão 1p.

      No caso de pagamentos fixos, p teria de ser definido de uma forma que o valor total a pagar seja SEMPRE inferior ao valor do limite definido em [b]. Por exemplo, a poderia ser 3 em ambos os casos (a pensão seria fixa para os dois pensionistas)

      No caso de pagamentos ajustados, p seria 4 em 2050 e 3 em 2051. Os pensionistas veriam a sua pensão flutuar com a capacidade de pagar.

      Obviamente, modelos mais complexos poderiam ser considerados.

      Eliminar
  5. "De qualquer forma, e dando de barato esta alegação, o valor disponível para o seu financiamento depende crucialmente da forma escolhida para o financiamento."

    Obviamente que sim. Resta saber se o valor disponivel se se optar por capitalização será maior do que o valor disponivel se se optar por redistribuição. Não tenho certezas nem para um lado nem para o outro.

    ResponderEliminar
  6. Há, no entanto, na abordagem de R Reis um senão omitido, salvo erro: não sabemos, que parte das contribuições (entidade patronal e trabalhador, totalizando cerca de 1/3 da remuneração bruta) é destinado a "poupança" (reforma) e "prémio de seguro" (subsídios de desemprego).

    O que, nas circunstâncias actuais, é um factor muito influente na apreciação deste assunto.

    ResponderEliminar
  7. E um outro sistema de financiamento não seria mais ajustado?
    Nem de solidariedade, nem de capitalização:
    http://existenciasustentada.blogspot.pt/2010/11/11-estado-social.html

    ResponderEliminar

Não são permitidos comentários anónimos.